Montesclareou: A crise hídrica em Montes Claros

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sábado, 29 de julho de 2017

A crise hídrica em Montes Claros

Por Cibele Nunes Alencar, servidora do TRE.

Quem mora em Montes Claros já se acostumou ou tenta se acostumar com o racionamento de água. Entende que a crise vem da estiagem, mas não dimensiona quanto dela se deve ao descaso no trato com os recursos hídricos. Enquanto a população aguenta o infortúnio, uma proposta insólita da Copasa é apresentada e uma denúncia chocante vira notícia na imprensa.

Em audiência pública realizada no dia 05 de julho, a Copasa tentou convencer a população de que a solução para a escassez de água em Montes Claros e região é a retirada de mais água de outro rio! Para tanto, projeta uma obra que custará no mínimo R$135 milhões para captar água do convalescente Rio Pacuí. Estranhamente, a estatal mineira não suscitou como melhor solução a revisão de outorgas junto ao IGAM – Instituto Mineiro de Gestão de Água, e uma política de racionamento também para grandes consumidores, como indústrias e grandes irrigantes.

No dia 15 de julho de 2017, o Gazeta Norte Mineira noticiou a manchete: “MP quer suspender outorga para reflorestadora”. A reflorestadora em questão é a Plantar.

Segundo a reportagem, a empresa tem uma outorga de captação de água do Rio Saracura 15 (quinze!) vezes maior que a outorga que a Copasa tem para abastecer a cidade de Montes Claros. Nota-se que o problema não é bem São Pedro…

 Sugiro que os norte-mineiros se comprometam com a realidade e questionem à empresa Reflorestadora Plantar, ao IGAM, à Superintendência Regional de Meio Ambiente, à Copasa e ao Ministério Público se é possível economizar ainda mais água e revitalizar rios, antes de se começar a pensar em fazer uma obra dispendiosa, temerária, paliativa no primeiro momento, mas bastante comprometedora do recurso hídrico para as gerações futuras.

A fé pública e a crise hídrica de Montes Claros

A água brota pura e formaria um rio caudaloso não fosse uma barragem bem pertinho da nascente. Alguém poderia achar isso muito errado, já que rio foi feito para correr… Mas o costume de tirar flor bonita do pé, mesmo que para morrer feia num vaso, era tão normal… como o de prender passarinho alegre em depressiva gaiola… que barragem na nascente não assustava tanto.

Como nossos hábitos, coisa errada também caberia fácil num documento chamado Outorga de direito de uso ou interferência de recursos hídricos. Acreditamos pela lei e pela burocracia que uma folha de papel tem o poder de mover não só montanhas, mas tudo que existe. Paradoxalmente, por essa capacidade muitos proclamam o Direito como ciência… No mundo das ideias, juristas, juízes, advogados, e chefes bem mandados escrevem como se estivessem esculpindo pedras brutas em formato de diamantes ou transformando pirita em ouro, para provar que realmente o Direito ciência deva ser. Nesse mundo fictício, são formados muitos alquimistas esquizofrênicos… Já no mundo de seres viventes, entre cascalhos, espontaneamente sem um só escrevente vai se provando que Direito significa fé. E sem trabalho todos dessa turma elencados são sacerdotes bem sucedidos… Porque, naturalmente, se acredita que burocracia e leis tendem ao bem coletivo. E naturalmente vamos acreditando… já que nascemos na sociedade em que nossos pais assinaram esse contrato, e antes deles outros tantos, naturalmente nos tornamos também partes cumpridoras de uma lista de deveres e quando merecedores, fruidores de direitos de outra lista. Uns entenderam tão bem o princípio em que a fé anima esse contrato… que se aproveitaram da confiança contratada e conseguiram habilmente curvar a reta. Eram os bem maquiados falsos profetas, ilusionistas especializados em ilusões óticas jurisdicionais, não mais no mundo das ideias, mas no real. São como macacos vigias espertinhos emitindo o aviso de predadores para que outros macacos apenas abandonem suas comidas. Seguem com êxito cativando os homens de fé os falsos profetas desvirtuadores da boa intenção. E tagarelas com vários sinais de alertas se puseram a encher folhas de papéis com o que seria tão bonito quanto uma flor no vaso, um pássaro na gaiola ou um rio represado. O primeiro sinal de alerta foi dado quando pela justificativa de desenvolvimento, empresas podiam aqui se instalar com muitas garantias e nenhuma preocupação com o meio ambiente.

Hoje TV, rádio e internet são a mata que ecoa o sinal de alerta para economizar água. A empresa responsável por encher nossas caixas d’água pediu parcimônia e estabeleceu rodízios de abastecimento. Muitos banhos a conta gotas quando muito. Quando pouco não tomados… Até idas ao banheiro postergadas por falta de água na descarga do vaso sanitário. Por sermos cristãos, não xingamos nem Deus, nem os santos. Por sermos pecadores, achamos ser nós mesmos os culpados. E por sermos pacatos, aceitamos o rodízio.

Os rios há muito tempo eram nossos. Acostumamos a fazer deles o nosso esgoto. Felizes estávamos por domar o ambiente como o Senhor nos havia recomendado e presenteado. Era natural que a natureza nos servisse, interpretamos o Gênese a nosso bel prazer, como os falsos profetas defendem e fazem leis. Era muito natural um papel transformar um rio em esgoto. Era muito natural obedecer a rodízios. Todos têm direito ao meio ambiente. E, como corolário, o direito de domá-lo. Deveria ser natural uma represa na nascente. E o mundo de eucalipto em volta. Todos devem estar cumprindo o combinado.

Depois do trabalho, cansada, esperando e torcendo para o relógio soar meia-noite e chegar a água para eu poder tomar banho, sentei-me à mesa e li a manchete. Parece que o Ministério Público quer suspender um papel que transformou o rio que me banhava em copasa para eucalipto. A água para humanos era a sobra da água dada a eucaliptos. Apenas a sobra… Mas, como poderia ser dada essa outorga? Se não consenti isso no contrato de que fui parte? Lembrei-me que havia visto no Google Maps a nascente, a represa e a floresta de carvão para a indústria. A lembrança se fez espelho e me refletiu como um aborígene do século XV que viu sem enxergar as caravelas chegando ao novo mundo… O novo e o absurdo lhe eram invisíveis… Achou normal a vista. Como a parte que me daria a fruição de direitos agora tira de mim a própria água? Como haveria tão monstruosa madeira sobre as águas se nunca havia visto nada além de água e nuvens no horizonte? Eu era aquele cego aborígene. Tinha olhos e não via… Foi então que ouvi o sinal de aviso de predadores e me pus a correr como a todos. Eu era um primata enganado por outro primata. Li a matéria jornalística à noite, mas durante o dia não houve leitores? Poderíamos juntos ter saído às ruas e cobrado explicações. Em uma grande manifestação de descontentamento como a que Moisés liderou!… Bateríamos mais de uma vez na grande pedra e reclamaríamos água, como o verdadeiro profeta fez no deserto! Precisamos saber se, com o respaldo da própria burocracia! se mata a sede de apenas uma pessoa não humana! com a água que deveria ser dada à gente de carne e osso. Mas, as ruas estavam quietas. Não havia nenhum manifestante informando aos incautos do estranho caso da outorga da Plantar. Todos estavam retos em seus trabalhos esperando e rezando que à noite se pudesse tomar banho…

Fora dito à população que água era só para consumo humano. Que nem se podia molhar o jardim. Acreditou-se que o trato era tanto para pessoa humana, quanto para pessoa jurídica. Mas, um papel dava à pessoa que existe apenas em outro papel! e que não tem sede como nós! o maior direito à água! Legalmente ao papel foi dada nossa água. Todos acreditam na necessidade de economizar. Pois não se chove! Até de carne dever-se-ia fazer jejum, já que boi consome muita água. Comer um bife é uma espécie de banditismo, estar à margem do combinado na sociedade. E o combinado é economizar água. Mas o macaco vigia deu um falso alarme. Em quem confiar? E se o predador for real e não acreditarmos? Olho o mar límpido, água e nuvens, mas quantas caravelas exploradoras estou deixando de enxergar? Sou um primata enganado. Sou também um aborígene cego de olhos sãos. Se ao menos a pessoa jurídica fosse uma reflorestadora que cuidasse da mata ciliar desde a nascente, que cuidasse do rio como um filho cuida dos negócios do pai. Mas na bíblia dessa pessoa não existe a palavra cuidar, a bíblia dela era como a nossa que traduziu assim o Genesis 1-26: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.” Domine… Não cuide. Tais como nós pessoas humanas, são as pessoas não humanas inventadas por nós. Nem seria preciso um falso profeta para dar como certa uma outorga hídrica de construção de barragem e captação de água à beira de uma nascente, simplesmente para irrigar uma floresta de carvão. Com uma captação de água quinze vezes maior que a concedida para duzentas e sessenta mil pessoas humanas! a pessoa não humana reproduz nossa ignorância em dominar a natureza. Duzentos e sessenta mil fiéis de joelhos adorando e servindo a um monte de madeira. Idólatras no deserto…Duzentos e sessenta mil crédulos e confiantes na outorga de direito de uso ou interferência de recursos hídricos. Tantos fiéis ao Direito… Quantos deles fiéis ao bem comum? Coragem diria o bom Deus! O novo e o absurdo existem, apesar de nossas retinas fatigadas. Abramos os olhos da alma.


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